quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O que é Educação do Campo?

Madrugada camponesa faz escuro (já nem tanto) / vale a pena trabalhar. Faz escuro, mas eu canto / porque a manhã vai chegar. Thiago de Mello, 1962.

 Roseli Salete Caldart[1]

A pergunta indica que já é possível abordar a questão da Educação do Campo no plano da discussão conceitual. Quer dizer, há um acúmulo de práticas, relações e embates que permitem uma abstração que passa a servir de categoria teórica para análise de cada prática particular, de cada posicionamento diante da realidade a que a Educação do Campo se refere. Trata-se de um conceito novo e em construção na última década. Portanto um conceito próprio do nosso tempo histórico e que somente pode ser compreendido/discutido no contexto de seu surgimento: a sociedade brasileira atual e a dinâmica específica que envolve os sujeitos sociais do campo.

O conceito de Educação do Campo é novo, mas já está em disputa, exatamente porque o movimento da realidade que ele busca expressar é marcado por contradições sociais muito fortes. Para nós o debate conceitual é importante à medida que nos ajuda a ter mais claro quais são os embates e quais os desafios práticos que temos pela frente.
No debate teórico o momento atual não nos parece ser o de buscar “fixar” um conceito, fechá-lo em um conjunto de palavras: porque isso poderia matar a idéia de movimento da realidade que ele quer apreender, abstrair, e que nós precisamos compreender com mais rigor justamente para poder influir ou intervir no seu curso. Mas uma primeira compreensão necessária pra nós é de que se o conceito de Educação do Campo, como parte da construção de um paradigma teórico e político, não é fixo, fechado, também não pode ser aleatório, arbitrário: qualquer um inventado por alguém, por um grupo, por alguma instituição, por um governo, por um movimento ou organização social. Pelo nosso referencial teórico, o conceito de Educação do Campo tem raiz na sua materialidade de origem e no movimento histórico da realidade a que se refere. Esta é a base concreta para discutirmos o que é ou não é a Educação do Campo.
Educação do Campo é um conceito em movimento como todos os conceitos, mas ainda mais porque busca apreender um fenômeno em fase de constituição histórica; por sua vez a discussão conceitual também participa deste movimento da realidade. Trata-se, na expressão do prof. Bernardo Mançano, de uma disputa de “território imaterial”, que pode em alguns momentos se tornar força material na luta política por territórios muito concretos, como o destino de uma comunidade camponesa, por exemplo. Já é possível identificar muitas questões importantes na discussão conceitual da Educação do Campo.
Nesta exposição vamos pontuar três que nos parecem merecer destaque porque sinalizam tensões que podem nos revelar contradições importantes.
Primeira: A materialidade de origem (ou de raiz) da Educação do Campo exige que ela seja pensada/trabalhada sempre na tríade: Campo - Política Pública - Educação. É a relação, na maioria das vezes tensa, entre estes termos que constitui a novidade histórica do fenômeno que batizamos de Educação do Campo. Mas à medida que a Educação do Campo vai se afirmando na sociedade, que entra como nome de secretarias ou coordenações de governos, que aparece como especificidade de preceitos legais, que dá nome a cursos e a linhas de pesquisa, que indica determinadas práticas ou reflexões de movimentos sociais, de movimentos sindicais ou de grupos sociais específicos, começa a aparecer uma tendência que desloca a Educação do Campo de sua identidade originária. A tendência é a de descolar estes termos dependendo dos
interesses em questão ou dos sujeitos envolvidos no debate ou nas práticas e situações de conflito.
Há então quem prefira tratar da Educação do Campo tirando o campo (e seus sujeitos sociais concretos) da cena, possivelmente para poder tirar as contradições sociais (o “sangue”) que as constituem desde a origem. Por outro lado há quem queira tirar da Educação do Campo a dimensão da política pública porque tem medo que a relação com o Estado contamine seus objetivos sociais emancipatórios primeiros. Há ainda quem considere que o debate de projeto de desenvolvimento de campo já é Educação do Campo. E há aqueles que ficariam bem mais tranqüilos se a Educação do Campo pudesse ser tratada como uma pedagogia, cujo debate originário vem apenas do mundo da educação, sendo às vezes conceituada mesmo como uma proposta pedagógica para as escolas do campo.
Precisamos ter cuidado: pensar os termos separados significa na prática promover uma desconfiguração política e pedagógica de fundo da Educação do Campo. E mais: se queremos ajudar a construir uma concepção que seja fiel à sua materialidade de origem, além de pensar as relações é preciso pensar em uma determinação primeira: foi o campo, sua dinâmica histórica, que produziu a Educação do Campo. Ou seja, o campo é mesmo o primeiro termo da tríade. E não uma “idéia” de campo, mas o campo real, das lutas sociais, da luta pela terra, pelo trabalho, de sujeitos humanos e sociais concretos; campo das contradições de classe efetivamente sangrando.
A Educação do Campo nasceu como mobilização/pressão de movimentos sociais por uma política educacional para comunidades camponesas: nasceu da combinação das lutas dos Sem Terra pela implantação de escolas públicas nas áreas de Reforma Agrária com as lutas de resistência de inúmeras organizações e comunidades camponesas para não perder suas escolas, suas experiências de educação, suas comunidades, seu território, sua identidade.
A Educação do Campo nasceu tomando/precisando tomar posição no confronto de projetos de campo: contra a lógica do campo como lugar de negócio, que expulsa as famílias, que não precisa de educação nem de escolas porque precisa cada vez menos de gente, a afirmação da lógica da produção para a sustentação da vida em suas diferentes dimensões, necessidades, formas. E ao nascer lutando por direitos coletivos que dizem respeito à esfera do público, nasceu afirmando que não se trata de qualquer política pública: o debate é de forma, conteúdo e sujeitos envolvidos.
A Educação do Campo nasceu também como crítica a uma educação pensada em si mesma ou em abstrato; seus sujeitos lutaram desde o começo para que o debate pedagógico se colasse à sua realidade, de relações sociais concretas, de vida acontecendo em sua necessária complexidade.
Em cada um dos termos, pois, os três se manifestam: se pensamos desde a política pública, por exemplo, na disputa de forma e conteúdo está a disputa de projeto de campo e de concepção de educação. E está em disputa o protagonismo na própria construção desta política: é bom lembrar que na história do Brasil os camponeses nunca antes tinham sequer disputado este protagonismo. As políticas educacionais brasileiras, quando pensaram a especificidade da população trabalhadora do campo, sempre o fizeram na perspectiva do “para”; nem “com” e muito menos “dos” trabalhadores.
É importante ter presente que está em questão na Educação do Campo, pensada na tríade campo política pública-educação e desde os seus vínculos sociais de origem, uma política de educação da classe trabalhadora do campo, para a construção de um outro projeto de campo, de país, e que pelas circunstâncias sociais objetivas de hoje, implica na formação dos trabalhadores para lutas anti-capitalistas, necessárias à sua própria sobrevivência: enquanto classe, mas também enquanto humanidade. Formação que inclui a afirmação de novos protagonistas para pensar/construir esta política: os próprios trabalhadores do campo como sujeitos construtores de seu projeto de formação. Ou seja, são os trabalhadores que fundamentalmente não podem perder a noção da tríade e do projeto mais amplo. E, diga-se, estamos nos referindo a uma política que não se reduz à política pública, mas que inclui/precisa incluir políticas de acesso à educação pública para o conjunto dos camponeses, para o conjunto das famílias trabalhadoras do campo.
Segunda: A Educação do Campo trata de uma especificidade; assume-se como especificidade: na discussão de país, de política pública, de educação. Essa característica nos tem aproximado e distanciado de muitos sujeitos/grupos que fazem e discutem educação e que defendem uma perspectiva de universalidade, de educação unitária e que nos alertam para o perigo da fragmentação das lutas da classe trabalhadora. Também aqui há uma tensão a ser enfrentada, para que a contradição real possa ser apreendida e superada.
O que nos parece fundamental entender para não nos desviarmos da discussão de origem é que a especificidade de que trata a Educação do Campo é do campo, dos seus sujeitos e dos processos formadores em que estão socialmente envolvidos. Não tem sentido, dentro da concepção social emancipatória que defendemos afirmar a especificidade da Educação do Campo pela educação em si mesma; menos ainda pela escola em si mesma (uma escola específica ou própria para o campo). Isso é reducionismo; politicamente perigoso e pedagogicamente desastroso. E este reducionismo de fato tem aparecido nos debates e nas práticas, exatamente pela tendência indicada antes de descolamento dos termos da tríade de constituição originária da Educação do Campo.
A contradição real que esta especificidade vem buscando explicitar é que historicamente determinadas particularidades não foram consideradas na pretendida universalidade. O campo, na perspectiva da classe trabalhadora do campo, não tem sido referência para pensar um projeto de nação, assim como não existe na definição das políticas de educação, de outras políticas[2].
Os sujeitos que trabalham e vivem do campo e seus processos de formação pelo trabalho, pela produção de cultura, pelas lutas sociais, não têm entrado como parâmetros na construção da teoria pedagógica e muitas vezes são tratados de modo preconceituoso, discriminatório. A realidade destes sujeitos não costuma ser considerada quando se projeta um desenho de escola. Esta é a denúncia feita pela especificidade da Educação do Campo: o universal tem sido pouco universal. O que se quer, portanto, não é ficar na particularidade, fragmentar o debate e as lutas; ao contrário, a luta é para que o “universal seja mais universal”, seja de fato síntese de particularidades diversas, contraditórias.
Mas tem aparecido outra tensão no debate dos últimos anos: se alguns negam ou fazem a crítica da Educação do Campo porque ela trata de uma particularidade, outros a estão criticando porque ela não dá conta de todas as particularidades presentes na realidade dos trabalhadores do campo hoje e então seria preciso um esforço de pensar a educação desde cada uma delas: pensar na educação dos camponeses, na educação dos assalariados do campo, na educação dos povos da floresta, na educação dos quilombolas,...
Uma reflexão de Wallerstein (que não diz respeito a esse nosso tema específico) nos ajuda a precisar a perspectiva de origem da Educação do Campo: não devemos nem aceitar universalismos imperiais (ou imperialistas) nem glorificar ou absolutizar particularismos cada vez menores, e ainda pior, para ficar neles[3]. Ambas as posições nos desviam do caminho da transformação social e da emancipação humana. E há um detalhe muito importante no entendimento da Educação do Campo: o campo não é qualquer particularidade, nem uma particularidade menor. Ela diz respeito a uma boa parte da população do país; ela se refere a processos produtivos que são a base de sustentação da vida humana, em qualquer país. Não é possível pensar um projeto de país, de nação, sem pensar um projeto de campo, um lugar social para seus sujeitos concretos, para seus processos produtivos, de trabalho, de cultura, de educação. É preciso lembrar, afinal, que o que está em questão hoje no mundo é o próprio modo de vida em sociedade que a modernidade (capitalista) construiu e preparou para autodestruição.
E nesta lógica um dos aspectos importantes a questionar é exatamente o da “contradição inventada” entre campo e cidade. Ou seja, a antinomia estabelecida, a visão hierárquica entre campo e cidade foi produzida historicamente e sua superação faz parte da construção de uma nova ordem social. Pelo bem não apenas dos sujeitos do campo, mas da própria humanidade, precisamos estar atentos a esta contradição e evitar que a Educação do Campo passe a reforçá-la ou reforçar a lógica social que a instituiu.
Terceira: O movimento da Educação do Campo se constitui de três momentos que são distintos, mas simultâneos e que se complementam na configuração do seu conceito, do que ela é, está sendo, poderá ser.
A Educação do Campo é negatividade: denúncia/resistência,luta contra. – Basta! de considerar natural que os sujeitos trabalhadores do campo sejam tratados como inferiores, atrasados, pessoas de segunda categoria; que a situação de miséria seja seu destino; que no campo não tenha escola, que seja preciso sair do campo para freqüentar uma escola; que o acesso à educação se restrinja à escola, que o conhecimento produzido pelos camponeses seja desprezado como ignorância.
A Educação do Campo é positividade: a denúncia não é espera passiva, mas se combina como práticas e propostas concretas do que fazer, do como fazer: a educação, as políticas públicas, a produção, a organização comunitária, a escola.
A Educação do Campo é superação: projeto/utopia: projeção de uma outra concepção de campo, de sociedade, de relação campo e cidade, de educação, de escola. Perspectiva de transformação social e de emancipação humana.
A contradição a ser enfrentada aqui: nem sempre são os mesmos sujeitos que se juntam, se articulam, se identificam nos três momentos. E a própria compreensão de cada momento pode ser diferente: a denúncia é contra quem? O projeto quer mudar até onde? E às vezes, nas ações concretas é difícil distinguir o que efetivamente projeta futuro e o que são concessões que podem matá-lo. Mas tenhamos presente que na correlação atual de forças da sociedade onde isso tudo acontece, manter a contradição instalada é ainda a nossa luta maior; se ela for superada o mais provável é que isso signifique nossa derrota, talvez nossa morte.
No caso da Educação do Campo, manter a contradição instalada significa continuar sua trajetória sendo fiel ao seu percurso original de vínculo com os ‘pobres do campo’ e com suas organizações e lutas sociais. Porque é destes sujeitos (que hoje “lutam pra deixar de morrer”) que estão nascendo/podem nascer experiências, alternativas, que contestam mais radicalmente a lógica social dominante, hegemônica e recolocam a perspectiva de construção social para “além do capital”. É disso que se trata na questão da resistência política, econômica e cultural do campesinato, de uma outra lógica de trabalho no campo que não o assalariamento, que não a agricultura de negócio. É disso também que se trata na questão da agroecologia vinculada à justiça social e à soberania alimentar, da cooperação entre os trabalhadores, de projetos educacionais que se vinculam a estes processos.

O que é Educação para a Educação do Campo
Ou: qual a concepção de educação que a constitui ou que emerge/é exigida pela materialidade de origem e pelo movimento atual da realidade a que a Educação do Campo se refere? Destaque-se que não se trata de discutir “filiação teórica”, ou que autores “seguimos”. A questão é mais profunda, e diz respeito à relação entre teoria e prática; diz respeito ao necessário movimento da práxis. A questão e o momento exigem que pensemos em perspectiva: a Educação do Campo na relação com a educação, ou com o debate/a prática da educação contemporânea. No fundo parece que está na hora de se perguntar: o que significa a emergência da Educação do Campo no contexto atual da educação contemporânea, e especialmente no Brasil? Ou de maneira mais direta: até que ponto a Educação do Campo representa (ou sinaliza) um contraponto à concepção liberal de educação, hoje hegemônica? Questões que passam pela reflexão sobre que interrogações a Educação do Campo traz às políticas educacionais e às teorias pedagógicas presentes em nosso tempo. E também sobre qual o lugar da Educação do Campo no projeto educativo dos Movimentos Sociais protagonistas das lutas que lhe deram origem.
Nesta mesa e para a discussão deste Seminário gostaria de destacar alguns pontos desta reflexão, no mesmo critério de que estão a indicar tensões ou já contradições importantes, de cujo movimento depende exatamente a concepção de educação a ser afirmada pela Educação do Campo no embate com a visão liberal, nosso parâmetro necessário de análise.
Primeiro: Na Educação do Campo o debate do campo precede o da educação ou da pedagogia, ainda que o tempo todo se relacione com ele. E para nós debate de campo é fundamentalmente debate sobre o trabalho no campo. Que traz colada a dimensão da cultura, vinculada às relações sociais e aos processos produtivos da existência social no campo. Isso demarca uma concepção de educação. Integra-nos a uma tradição teórica que pensa a natureza da educação vinculada ao destino do trabalho.
De um lado esta concepção nos aproxima/nos faz herdeiros de uma tradição pedagógica de perspectiva emancipatória e socialista: é desta tradição o acúmulo de pensar a dimensão formativa do trabalho, do vínculo da educação com os processos produtivos, de como não é possível pensar/fazer a educação sem considerar os sujeitos concretos e os processos formadores que os constituem como seres humanos desde a práxis social. Uma tradição que nos orienta a pensar a educação colada à vida real, suas contradições, sua historicidade; a pretender educar os sujeitos para um trabalho não alienado; para intervir nas circunstâncias objetivas que produzem o humano.
Mas de outro lado, é também da visão liberal o pensar a relação entre educação e trabalho, e mais ainda, a relação entre educação e “modelo de desenvolvimento”, consolidada historicamente como subordinação da educação às exigências de uma forma histórica de relações de trabalho, a um determinado modelo de desenvolvimento social ou, mais estritamente, aos interesses do mercado capitalista do trabalho. Uma relação que é explicitada, ou nem tanto, de acordo com os interesses do capital em cada momento histórico.
O que queremos chamar a atenção, pois, é que a premissa do vínculo entre campo e educação, entre projeto de campo e projeto de educação, essencial à concepção da Educação do Campo, pode também nos fazer cair na armadilha da visão liberal de educação. A chamada “educação rural” já foi isso: uma visão pragmática e instrumentalizadora da educação, colocada a serviço das demandas de um determinado modelo de desenvolvimento de campo. Isso não tem nada de emancipatório: e ainda menos quando se trata de uma visão setorial de desenvolvimento ou da lógica dominante de pensar a produção apenas na dimensão do negócio.
A visão de campo da Educação do Campo exige por si só uma visão mais alargada de educação das pessoas, à medida que pensa a lógica da vida no campo como totalidade em suas múltiplas e diversas dimensões. Mas ainda assim há um risco de instrumentalização. Já sabemos pela história: toda vez que se subordina a educação a interesses/necessidades de formação imediata (por “melhores” que sejam) a educação se empobrece do ponto de vista de formação humana, de perspectiva unilateral, necessariamente de “tempo longo”. E essa perspectiva pedagógica não tem nada a ver com a defesa de uma educação descolada da vida real. Ao contrário, é exatamente a vida real que para ser emancipada exige processos educativos mais complexos, densos, relacionais, de longa duração.
A materialidade de origem da Educação do Campo, e o percurso dos debates e das reflexões teóricas que temos produzido nesta década, pende a Educação do Campo para o primeiro pólo desta contradição (primeiro no nosso enunciado, na prática o que não é hegemônico), mas o contexto da disputa atual pode facilmente dar a vitória ao segundo, porque é ele que está “no leito”, a favor da maré liberal. Os próprios movimentos sociais, responsáveis na história recente por tensionar e exigir uma visão alargada de educação, tendem às vezes, nas suas práticas educacionais concretas, a pensar a educação no viés de instrumentalização (seja política ou técnica), movidos talvez pelas circunstâncias objetivas ou pela necessidade de garantir conquistas imediatas e de sobreviver.
Segundo: As lutas e o debate da Educação do Campo sobre políticas públicas têm se centrado na escola, ou nos processos de escolarização, mas sua materialidade de origem e seus vínculos com uma teoria pedagógica emancipatória tensionam esta centralidade e a própria concepção de escola que dela decorre. Há razões objetivas, históricas, para esta focalização na escola, mas este foco no contexto das tensões já tratadas pode nos colocar, do ponto de vista da concepção pedagógica, como reféns de uma visão escolacentrista, que é justamente uma das marcas da visão moderno-liberal de educação. Ocorre que esta concepção mata a Educação do Campo. É contradição a ela exatamente pelo que explicamos antes: a especificidade originária da Educação do Campo não está numa visão ou num projeto de escola.
De um lado, então, ao focar a escola a Educação do Campo pode ajudar/tem ajudado a alargar o olhar sobre ela, tratando-a não em si mesma, mas em perspectiva. Mas de outro lado, pode virar refém do escolacentrismo, o que tem sido uma tendência de algumas práticas e debates atuais.
A escola é um direito de todas as pessoas. Ela tem um papel educativo específico no mundo moderno, a ponto de que quem não passa por ela fica hoje efetivamente em condição social desigual. Mas reconhecer isso não é/não precisa ser o mesmo que absolutizar a educação escolar, como se apenas ela ‘contasse’ na vida das pessoas e, pior, considerar a escola como referência única para pensar todos os processos formativos. Isso é um reducionismo, enganoso do que de fato é a realidade da própria sociedade capitalista atual. Reducionismo que é agravado pela difusão de uma visão igualmente simplificadora de escola, como se o processo educativo escolar fosse igual à dimensão da instrução ou do ensino. O projeto educacional que ajuda a dar sustentação à forma de sociedade que temos nunca foi somente escolar. E o processo educativo garantido pela escola nunca foi somente baseado no ensino[4].
É preciso não perder de vista (e esta é uma reflexão que certamente requer um aprofundamento teórico bem maior do que é possível fazer nos limites desta exposição) que a escola tem uma forma institucional e uma lógica de trabalhar com a educação que foi construída socialmente e que traz entranhados os mesmos condicionantes históricos das relações sociais que o projeto da Educação do Campo se coloca como desafio transformar, entre os quais o da antinomia entre trabalho manual e trabalho intelectual e entre cidade e campo. Por isso, e muito mais do que pelos conteúdos de ensino que trabalha, é que os processos de escolarização, deixados por conta da lógica dominante, podem representar um entrave em vez de um avanço nos processos de transformação. Por isso, um projeto de educação emancipatória precisa tensionar a “lógica escolar” assumida pelos processos formadores, por vezes também naqueles que acontecem fora da escola[5].
Do ponto de vista da teoria pedagógica (que ainda não pode ser o mesmo da política pública) descentrar-se da escola é condição para que a Educação do Campo se mantenha fiel a uma visão mais alargada de educação e não perca o horizonte das grandes questões da formação humana, reafirmando e trabalhando uma concepção de educação emancipatória.
A materialidade educativa de origem da Educação do Campo está nos processos formadores dos sujeitos coletivos da produção e das lutas sociais do campo. Por isso ela desafia o pensamento pedagógico a entender estes processos, econômicos, políticos, culturais, como formadores do ser humano e portanto constituintes de um projeto de educação emancipatória, onde quer que ela aconteça, inclusive na escola[6].
Esta é a centralidade da reflexão pedagógica da Educação do Campo que deve ser mantida. Se o pólo escola centrista for vitorioso, especialmente na visão de educação dos próprios sujeitos do campo, não há como pensar/fazer uma escola na perspectiva da Educação do Campo.
E a Educação do Campo não precisa tirar o foco da escola para não ser escolacentrista. Se tirar, pelo menos no momento histórico atual, pode perder um dos seus sentidos de luta social originária. Basta que a escola seja tratada em perspectiva, inclusive na sua dimensão de política pública. A realidade atual do campo brasileiro até facilita este olhar de totalidade, ainda que pelas suas circunstâncias trágicas.
Terceiro: Relacionado ao ponto anterior, mas não só: a Educação do Campo tem dado centralidade/peso à luta pela democratização do acesso ao conhecimento, reconhecendo sua importância estratégica na formação de sujeitos capazes de construir novas alternativas populares para o desenvolvimento do campo (do país). De um lado, pelos sujeitos que a Educação do Campo coloca em cena e pelas questões de sua realidade, isso pode trazer interrogações importantes sobre a que conhecimentos ter acesso, produzidos por quem e a serviço de que interesses, retomando o tenso e necessário vínculo entre conhecimento, ética e política. Se for fiel aos movimentos sociais de sua constituição, a Educação do Campo combinará a luta pelo acesso universal ao conhecimento, à cultura, à educação com a luta pelo reconhecimento da legitimidade de seus sujeitos também como produtores de conhecimento, de cultura, de educação, tensionando, pois, algumas concepções dominantes. É o que já acontece em muitas de nossas práticas, reflexões, debates.
Mas de outro lado, novamente, podemos cair na armadilha liberal e ficar reféns de uma determinada visão de conhecimento, e talvez reféns hoje do chamado cognitivismo e da (falsa) centralidade da instrução nas práticas educacionais, e especialmente na escola. E ficar subordinados ainda ao mito da ciência ou de uma visão de ciência absoluta, que tudo explica e tudo resolve. Isso também já acontece significativamente entre nós.
Há uma tendência neste início de século (que vem já do final do século XX) de recolocar no centro do debate pedagógico a questão da instrução tirando a centralidade do trabalho, da atividade, da práxis, justamente o legado da modernidade capitalista, seja na sua afirmação (ativismo) seja na sua crítica (marxismo). Da boa instrução, muitas vezes entendida como mero acúmulo de informações, dependeria a formação necessária para enfrentar a sociedade complexa, a “sociedade do conhecimento”. Trata-se de uma espécie de retorno à perspectiva iluminista, mas tendo a instrução abordada em um viés cada vez mais cognitivista, mentalista, como se a lógica do “aprender a aprender” fosse toda a explicação ou totalizasse a compreensão do processo educativo. E como se não houvesse mais interesses de classe envolvidos na produção do conhecimento e nem a disputa pelo que se considera um conhecimento socialmente legítimo. Ou seja, a subordinação de projetos educacionais aos interesses da reprodução das relações capitalistas, é disfarçada de uma forma sofisticadamente asséptica, despolitizada.
A instrução é um direito universal. O conhecimento é direito e é necessário. Mas é falsa esta centralidade quando ele é entendido nestes termos, como descolado de outras dimensões de um processo formativo; quando se separa conhecimento de valores e de interesses sociais. O projeto educacional/cultural que sustenta o capitalismo não é colocado em discussão nos espaços educacionais, como a escola, por exemplo, porque se convence aos professores de que só importa discutir os métodos de instrução ou de ensino, ou as formas de apropriação de conhecimentos supostamente neutros, produzidos fora da história e para além de parâmetros sociais, éticos, humanos. Isso é politicamente e humanamente muito perverso.
Este é então um fio de navalha e por isso um debate muito importante para os educadores e as educadoras do campo. A Educação do Campo tem recebido críticas por tentar afirmar na escola diferentes dimensões formativas, o que poderia secundarizar a questão do conhecimento e então fragilizar politicamente a classe trabalhadora do campo.
O que temos a dizer sobre essas críticas? A que conhecimento estas críticas se referem e de que modo de conhecer se trata? Qual o lugar da instrução na concepção de educação da Educação do Campo? Que instrução forma? emancipa? É só uma questão de conteúdo ou é também de método? Que nuances entre nossa preocupação com método de pensamento/capacidade de analisar a realidade e a reflexão ou reação cognitivista do “aprender a aprender”?
Infelizmente não será possível desdobrar estas reflexões todas nos limites da presente exposição. Mas pelo menos gostaria de chamar a atenção sobre sua importância no debate da nossa concepção de educação.
Quarto: A Educação do Campo precisa trabalhar com a questão do pluralismo. Ela precisa desta idéia: existe o outro e ele deve ser respeitado. Os sujeitos do campo são diversos e esta diversidade precisa ser incorporada em nossa reflexão político-pedagógica. Mas também aqui há uma contradição a ser enfrentada. A concepção de pluralismo que predomina hoje na sociedade é a de viés liberal que vê na diversidade a derrota da perspectiva de totalidade (na construção de um projeto social) e de unidade da classe trabalhadora. Respeito à diversidade que leva então à dispersão social, ao relativismo político e ao conseqüente enfraquecimento dos sujeitos coletivos.
O desafio colocado à Educação do Campo, como a toda perspectiva de educação emancipatória hoje, é o de revalorização ou de construção de um pluralismo desde outras bases políticas e teóricas. Pluralismo que no plano da educação seja diálogo, que pode ser de complementação ou de objeção e contraponto, mas que inclua sínteses, superações. Esta é outra das questões que não conseguiremos aprofundar aqui, mas que enunciamos como parte
da agenda das reflexões necessárias para o debate da Educação do Campo.


[1] Do Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária. Doutora em Educação pela UFRGS.
[2] Contraditoriamente, o peso econômico da agricultura, à medida que vem pelo pólo do capital e não do trabalho, não repercute em políticas que considerem ou sejam formuladas desde as necessidades da população que vive e trabalha no campo, exatamente porque as classes dominantes do campo, cada vez menos originárias do campo, não precisam de políticas específicas, a não ser daquelas que ampliem suas possibilidades de negócio.
[3] Wallerstein, Immanuel. Após o liberalismo. Em busca da reconstrução do mundo. Petrópolis: Vozes, 2002, pág. 220.

[4] Como nos ajuda a refletir István Mészáros: “...a questão crucial para qualquer sociedade estabelecida, é a reprodução bem-sucedida de (...) indivíduos cujos ‘fins próprios’ não negam as potencialidades do sistema de produção dominante. Essa é a verdadeira dimensão do problema educacional: a ‘educação formal’ não é mais do que um pequeno segmento dele. (...) Assim, além da reprodução, numa escala ampliada, das múltiplas habilidades sem as quais a atividade produtiva não poderia ser levada a cabo, o complexo sistema educacional da sociedade é também responsável pela produção e reprodução da estrutura de valores no interior da qual os indivíduos definem seus próprios objetivos e fins específicos. As relações sociais de produção reificadas sob o capitalismo não se perpetuam automaticamente. Elas só o fazem porque os indivíduos particulares interiorizam as pressões externas: eles adotam as perspectivas gerais da sociedade de mercadorias como os limites inquestionáveis de suas próprias aspirações. É com isso que os indivíduos ‘contribuem para manter uma concepção do mundo’ e para a manutenção de uma forma específica de intercâmbio social, que corresponde àquela concepção de mundo” (A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006).
[5]Este, diga-se de passagem, é um dos grandes desafios pedagógicos dos Movimentos Sociais de perspectiva emancipatória que incluem a educação escolar entre suas tarefas e lutas.

[6] Um detalhe que pode ser significativo para nossa reflexão aqui: se prestarmos atenção na arte que ficou como símbolo da Educação do Campo desde a primeira Conferência Nacional de 1998, e que foi produzida exatamente para expressar na linguagem do desenho aquelas discussões de origem, perceberemos que a escola está ali, mas escancaradamente aberta e combinada aos processos formativos da prática social (luta social, trabalho, cultura,...). Ou seja, o artista apreendeu e deu materialidade simbólica a esta tensão de que hoje tratamos.

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